Foto: Jorge Coelho Ferreira

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POEMAS DE NAMIBIANO FERREIRA

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15 de janeiro de 2014

PASSEIOS




Conheço as canções que o deserto desconhece.
bebo nas minhas mãos a imagem do deserto.
sinto-me torturado nas curvas do  deserto
onde vejo os barcos do planeta escamoso.

todas as minhas canções crepitam nos barcos.
todas as vozes concentram-se no meu sangue.

e o sangue para lá dos oásis do deserto
lembra os passeios sensuais dos meus olhos.


João Maimona

1 de janeiro de 2014

SÁBADO NOS MUSSEQUES

Poema escrito, segundo a Fundação Agostinho Neto, em 1948, vamos lá ver o que precisa de ser actualizado.... Deixo este acto de liberdade, ao leitor angolano, especialmente.


Os musseques são bairros humildes
de gente humilde


Vem o sábado
e logo ali se confunde com a própria vida
transformada em desespero
em esperança e em mística ansiedade


Ansiedade encontrada
no significado das coisas
e dos seres


na lua cheia
acesa em vez de candeeiros
de iluminação pública
que pobreza e luar
casam bem


Ansiedade
sentida nos barulhos
e no cheiro a bebidas alcoólicas
espalhadas no ar
com gritos de dor e alegria
misturados em estranha orquestração


Ansiedade
no homem fardado
alcançando outro homem
que domina e leva aos pontapés
e depois de ter feito escorrer sangue
enche o peito de satisfação
por ter maltratado um homem


Outros evitarão passar
onde o casse-tête derrubou o homem
darão voltas
saltarão muros
pisarão espinhos
pés descalços se cortarão
sobre cacos de garrafas
quebradas por crianças inocentes
e cada mulher
suspirará de alívio
quando o seu homem entrar em casa


Ansiedade
nos soldados que se divertem
emboscados à sombra de cajueiros
à espera de incautos transeuntes


A intervalos
ais de dor
lancinam ouvidos
ferem corações tímidos
e afastam-se passos
em correia angustiante
e depois dos risos da matula
desenfreada
só silêncio mistério lágrimas e ódio
e carnes laceradas
pelas fivelas dos cinturões



Ansiedade
nos que passam
à procura do prazer fácil


Ansiedade no homem
escondido em recanto escuro
violando uma criança


Sua riqueza calará o pai
e a criança
só tarde
clamará contra o destino


Ansiedade ouvida
na contenda da taberna


Compadres discutindo
escandalosamente
velha dívida de cem mil réis
entre os murmúrios
da numerosa assistência


Ansiedade
nas mulheres
abandonaram os homens
para ouvir
a vizinha aos gritos
ralhando contra a pobreza do marido


Ouvem-se
choros histéricos
ruídos de cadeiras caídas
respirações ofegantes
tilintar doloroso
de louça de ferro esmaltado
e a multidão invade a casa
os desavindos expulsam-na
e depois vem a reconciliação
com risinhos de prazer


Ansiedade
nos alto-falantes do cinema
de bocas escancaradas
a gritar swing
ao pé das bilheteiras
enquanto um carrocel
arrasta em turbilhões de sonho
luzinhas vermelhas verdes azuis
e também
a troco de dois mil e quinhentos
namorados e crianças


Ansiedade
nos batuques saudosos
dos kiocos contratados
o fundo de todo o ruído


Lunda sem fronteiras
A derrubar o sussuro
Da ânsia tumultante


Ansiedade
na humilde criança
que foge amedrontada do polícia
de serviço


Ansiedade
no som da viola
acompanhado uma voz
que canta sambas indefinidos
deliciosamente preguiçosos
pejando o ar
do desejo de romper em pranto


Com a voz
possa o grito de saudade
que a multidão tem dos dias não vividos
dos dias de liberdade
e a noite
bebe-lhes os anseios de vida


Ansiedade
nos bêbedos caídos nas ruas
alta noite


Ansiedade
nas mãos aos gritos
à procura de filhos desaparecidos


nas mulheres que passam embriagadas


no homem
que consulta o kimbanda
para conservar o emprego


na mulher
que pede drogas ao feiticeiro
para conservar o marido


na mãe
que pergunta ao advinho
se a filhinha se salvará
da pneumonia
na cubata
de velhas latas esburacadas


nas mulheres implorando
compaixão
as nossas senhoras
nas famílias rezando


enquanto oram
bêbedos urinam na rua
encostadas à parede
afastando-se depois
a ridicularizar as vezes
que perceberam
através das persianas das janelas


Ansiedade na kazukuta
dançada à luz do acetileno
ou do candeeiro Petromax
em sala pintada de azul
cheia de pó
e do cheiro a suor dos corpos
e de maneios de ancas
e de contactos de sexos


Ansiedade
nos que riem e nos que choram


nos que entendem
e nos que respiram sem compreender


Ansiedade
nas salas de dança
regurgitantes de gente
onde daí a instantes
o namorado repreende a noiva
insultos são atirados para o ar
enchendo o recinto de questões
que extravasam para a rua
acudindo polícias aos assobios


Ansiedade
no esqueleto de pau a pique
ameaçadoramente inclinado
a sustentar pesado tecto de zinco
e nos quintais
semeados de dejectos e maus cheiros
nas mobílias sujas de gordura
nos lençóis esburacados
e nas camas sem colchão


Ansiedade
nos que descobrem multidões passivas
esperando a hora


Nos homens
ferve o desejo de fazer o esforço supremo
para que o Homem
e a esperança
não mais se torne
em lamentos da multidão


A própria vida
faz desabrochar mais vontades
nos olhares ansiosos dos que passam


O sábado misturou a noite
nos musseques
com mística ansiedade

e implacavelmente
vai desfraldando heróicas bandeiras
nas almas escravizadas.


 Agostinho Neto, in Sagrada Esperança

1948